Nossa autossabotagem artística de cada dia
Recentemente, escrevi um texto intitulado “Por que fazer arte” e enquanto eu o escrevia, já estava refletindo sobre a síndrome do impostor e a autossabotagem na arte. Nós, artistas, teimamos em não fazer o que queremos. Teimamos em acreditar na possibilidade de fazer arte e de que é fundamental fazer arte.
Passamos a maior parte do tempo fazendo o que precisamos fazer e isso por si só já dificulta a liberdade quando o assunto é fazer o que se quer (mas já falei sobre isso no texto mencionado anteriormente).
Hoje, vou discorrer sobre a intimidação: fazer o que amamos é, realmente, intimidador. Vou te dar um exemplo simples, a partir da minha experiência. Eu amo desenhar e escrever desde sempre. É difícil até separar essas atividades de quem eu sou — embora não goste de falar sobre isso com todo mundo. Sou daquelas que têm dificuldades em chegar e me apresentar como “artista e redatora”, mesmo amando e me orgulhando muito do que eu faço.
A autossabotagem e a procrastinação, assim como a autodepreciação, são aquelas pequenas vilãs que assolam todos nós. Mesmo com ideias mil para escrever (vide o texto que havia programado entregar no final de novembro e não fiz até hoje ou o texto incrível sobre “aprendizado” que eu quero fazer e ainda nem comecei). Dei uma pequena pausa profissional para me dedicar exclusivamente a projetos pessoais e, com isso, precisei recalibrar a autogestão.
INSISTIR EM FAZER O QUE SE QUER É FUNDAMENTAL
Eu não tenho estado parada (finalizei dois cursos, me inscrevi em outra especialização, ando lendo muito mais), mas nada disso pode ser desculpa para eu não praticar desenho. Os vídeos engraçadinhos do reels ou as análises políticas horríveis do Youtube acabam dominando o dia e se a gente resistir a essas “recompensas instantâneas” vai dar tempo. Sim, é claro que daria MUITO tempo.
Acabei de ver dois vídeos sobre a vida artística e o “art business”: dois do Jono Dry e um do Steven Zapata. Os do primeiro foram mais voltados para o Art Business, com frases como “procure a galeria local” e “invista no network”, dois conselhos interessantes (embora questionáveis, em uma realidade brasileira) para quem visa à exposição em galerias de arte e museus.
Entretanto, o Steven Zapata falou sobre motivação. Falou sobre o espírito atribulado e inquieto que preenche a existência dos artistas (ok, este é meu tipo de vídeo preferido).
Discussões sobre o foco do vídeo à parte, ambos ressaltaram uma simples atividade em comum na longa, árdua e árida jornada artística: apenas faça arte. Uma atividade, inclusive, que deveria ser bem óbvia, mas nós, convenientemente, insistimos em esquecer.
Nulla dies sine linea
“Nenhum dia sem uma linha”, apenas faça arte. É isso! Faça arte de qualidade, mas também faça arte ruim, pratique, ouse. Preencha os benditos sketchbooks raivosamente, amorosamente, mas preencha. Preencha com cores, com rabiscos, com lápis, caneta, marcadores. Preencha com café, com tinta, com lágrimas, às vezes.
Jogue papel jornal no chão, use crayons e pastéis. Não tenha medo de desperdiçar o nanquim, de tentar aquela ideia que parece idiota demais, difícil demais, sem sentido demais. Não subestime o poder de combinar amarelo com verde e roxo, de misturar laranja, vermelho e rosa, ou de usar só preto. Não tenha medo de apagar tudo e começar de novo.
Use papel sulfite e trace círculos, quadrados e formas abstratas. Tente fazer linhas retas, copie o mestre, de Frazetta a Rembrandt, de Da Vinci a Basquiat. Copie as mestras também, pode ser a Olivia ou a Artemísia. Perca o medo de amassar e jogar fora, compre pastas, tire fotos e lote a SUA galeria antes de selecionar aqueles poucos para a galeria dos outros.
Nada justifica essa resistência em fazer algo que se ama. E, mesmo assim, a gente costuma se boicotar artisticamente todo santo dia. Por que raios isso acontece?
A “PROCRASTINAÇÃO ARTÍSTICA”
Há quem diga que seja autossabotagem e ela pode ser desencadeada (pelo menos, em mim) por 5 sentimentos/atitudes. Vem saber um pouco mais sobre esse processo quase inconsciente de procrastinação.
1. Medo de errar
Encarar a folha (ou a tela, seja ela a tradicional ou a do computador) em branco é um tanto quanto intimidador. De frente pra você, ela parece estar te encarando, te desafiando a preenchê-la com algo do qual você vai se orgulhar.
Essa voz (sim, isso pode ser uma paranóia bem louca, semelhante a uma voz) na sua cabeça te faz recusar o desafio e parar de querer criar algo. Te faz pesquisar horas e horas no Pinterest por alguma referência e inspiração, até que qualquer coisa seja um gatilho pra você ficar horas no TikTok, no Google ou na Netflix e desistir de desenhar.
Isso é puro medo de errar! Puro medo da sensação de ter perdido tempo e, algumas horas depois de ter começado, olhar para o resultado e lamentar ter gasto tempo de vida e material artístico em algo não tão bom assim — o que nos leva diretamente ao próximo ponto.
2. Não querer desperdiçar material
Material artístico é caro. É caro demais. Dá muita pena de usar, de ver os lápis de cor adquiridos por algumas centenas de reais (ou de dólares) irem, pouco a pouco, se tornando cotocos inúteis, as paletas de tinta ficando escassas e os pincéis cada vez mais sujos e grudentos.
Entretanto, deixe todos esses sintomas, junto com a cesta de lixo transbordando de papéis amassados, virarem orgulho. Não, não acredito que você precise usar aquele Canson, que custou alguns dias de trabalho (seu ou dos seus pais), servir como base para experimentações, se você não tem vontade.
Minha dica pessoal é: desapegue dos materiais ultra caros, especialmente naqueles dias em que você só não quer passar “nenhum dia sem uma linha”. Use um material de nível acadêmico ou mesmo escolar para teste e se você entrar no embalo ou tiver uma ideia merecedora de uma versão finalizada e/ou maior e definitiva, aí sim, aproveite para usar aquele material incrível e transforme a pena de usar em orgulho de ter feito valer a pena.
3. Coisas demais para fazer
Quando se trabalha, se cuida da casa, dos filhos e se estuda, é realmente um pouco difícil encontrar tempo para se dedicar àquele hobby pelo qual somos apaixonados. Entretanto, é importante ter em mente que nós somos nossos clientes. Repita comigo: você é sua própria cliente.
Da mesma forma que se você não tirar do seu próprio salário antes de fazer qualquer coisa, aquela soma para os investimentos vai desaparecer, se você não vir essas tarefas como obrigações, elas nunca vão sair do papel (ou, neste caso, aparecer no papel, com o perdão do trocadilho!).
Ver as tarefas artísticas com a mesma importância daquelas remuneradas e/ou imprescindíveis é o que vai te diferenciar do chamado “artista de fim de semana”. Se fazer arte faz parte de quem você é e você quer levar isso a sério e até, quem sabe, transformar isso no seu trabalho integral, é preciso trabalhar a disciplina. Sim, é doloroso e muito exaustivo.
Falo isso por experiência própria: mesmo ainda não trabalhando em tempo integral como artista, apenas quando eu entendi a importância da disciplina, foco e paixão real a ponto de desenhar e escrever todo dia é que eu vi melhorias reais na minha arte. Primeiramente, é preciso que a sua arte avance para você e, só depois, ela vai avançar para os outros.
4. Sensação de que é tudo em vão
Essa é a principal armadilha para qualquer artista: em uma sociedade pautada pelo materialismo, onde tudo precisa ser capitalizado, é difícil fazer algo apenas por fazer, quando se poderia estar fazendo algo útil (leia-se “ganhando dinheiro”). Dinheiro é bom e é fundamental, disso é impossível discordar. Ele ajuda, justamente, a ter independência e liberdade, elementos primordiais para a vida de qualquer artista.
Entretanto, quando se coloca a necessidade de “fazer coisas úteis” como condição, caímos na teia que nos leva a ver a arte como algo frívolo, dispensável, e, consequentemente, algo no qual você não precisa investir tanta atenção e esforço.
5. Expectativas muito altas
Outra grande armadilha é a da comparação, especialmente com aquele artista dotado de um estilo semelhante ao seu. Pode parecer clichê (e é mesmo), mas a sua arte é única. A sua forma de ver o mundo, aquilo que te chama atenção e você coloca na tela ou no papel dificilmente vai ser muito semelhante ao de outra pessoa.
Além disso, vale ressaltar a importância de aproveitar a jornada. A tentativa e erro, a experimentação e o estudo são fundamentais para desenvolver seu próprio estilo e temáticas. E tudo bem se você acabar não tendo um estilo bem definido. Vai fazendo no seu tempo, porque mesmo durante o aprendizado você já pode ter um portfólio artístico excelente.
Por último, estudar e buscar sempre boas referências, capazes de dialogar com a bagagem que você já tem, são atitudes sempre bem-vindas em qualquer área de conhecimento, especialmente no fazer artístico
SE É TÃO FÁCIL, POR QUE PROCRASTINAMOS?
Não existe uma resposta certa, ou uma fórmula mágica para evitar a procrastinação. O processo artístico, assim como a produção artística em si, é único. E isso, ao contrário do que possa parecer, é algo excelente!
Por isso, experimentar o que funciona para você no dia a dia é a melhor maneira de identificar as causas da sua procrastinação. Sim, mais uma vez o autoconhecimento é a cura. Abaixo, listo algumas ideias que funcionam pra mim, para você se inspirar, até descobrir o melhor caminho pra você:
Criar o hábito
Recentemente, eu descobri o poder de fazer arte com hora marcada. Assim como se toma café da manhã, se toma banho e se trabalha todos os dias, criar o hábito de desenhar ou escrever diariamente faz milagres. Dessa forma, o hábito não só aumenta a qualidade da sua arte, mas vai se tornando algo imprescindível, até que você não tenha mais dificuldade de separar um tempo para fazer.
Aliar disciplina a metas alcançáveis
Você sempre quis preencher um sketchbook? Sempre quis aprender a usar algum material? Então quebre esses grandes objetivos em objetivos menores. Por exemplo: um sketchbook de 90 páginas pode ser preenchido sem muita dificuldade com um desenho por dia durante 3 meses ou em 6 meses, com um desenho a cada dois dias.
Se o seu objetivo é aprender aquarela ou pintura a óleo, separe alguns tutoriais do Youtube e encontre leituras capazes de agregar ao seu aprendizado. Dedique uma hora por dia durante um ou dois meses e veja a mágica acontecer.
Fazer cópias da arte alheia
Quando se quer alcançar um nível específico, copiar é uma boa. Em minha jornada, a cópia foi e ainda é uma excelente maneira de desvendar os segredos e truques dos grandes mestres. Mas aqui vale o lembrete da ética: não vá vender desenho que não foi originalmente idealizado por você.
Inspirar-se com a sua própria trajetória
Se você já começou a fazer arte, busque ser sua própria musa. Quando tudo parece sem sentido ou eu estou com a sensação de que nada está avançando, eu gosto de olhar tudo o que já produzi até o momento. Penso no quanto evoluí, nos motivos que já me fizeram parar e naqueles que me fizeram voltar.
Assim, sempre funciona abrir os portfólios antigos e sentir aquela pontinha de orgulho e felicidade de ter a arte como aliada em momentos de alegria e como consolo e apoio nas dificuldades.
E então, vai descobrir o que funciona para você? Me acompanha lá no Lady Godiva Art para mais conteúdos para te inspirar a começar, retomar ou avançar ao fazer suas artes tradicionais!