De Todos Os Medos Possíveis, o de Ser Feliz é o Mais Triste

Thais Isel
6 min readApr 16, 2019

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Uma música antiga do Prefab Sprout está terminando de tocar na caixa de som pequena e potente. Em seguida, entra uma das minhas favoritas do Tears for Fears. Para uma mente cansada, alguns míseros instantes de silêncio já são suficientes para que ocorra uma espécie de “teletransporte”, em que corpo e a mente são levados a um lugar real ou irreal demais.

A voz de Roland Orzabal, aguda, seca e sem nenhum resíduo de floreio, rasga aquele silêncio e traz a mente de volta ao hic et nunc. Memories fade but the scars still linger… contrasta com o vazio que durou menos de um ou dois segundos.

As memórias desvanecem, mas as cicatrizes continuam. Não apenas as cicatrizes, mas as marcas, sejam elas boas ou más, insistem em permanecer mais do que deveriam. Talvez as lembranças boas não sejam lá tão fortes, mas também ficam à sua maneira. Se transformam em suspiros, aconchego ou saudade. Essa última que, por sua vez, pode ser boa de sentir ou causar uma dor insuportável.

E talvez seja para evitar essa dor que muitos têm medo da felicidade. Esse pavor existe e está longe de ser a vergonha de ser feliz, escancarada na letra de Gonzaguinha.

Sob o exótico título de “querofóbicos”, os sofredores desse mal temem alguma experiência traumática após momentos de intensa alegria. São mulheres que, após darem à luz, sofreram de depressão pós-parto; são pessoas que descobriram alguma doença após conseguirem o emprego dos sonhos, ou ao retornarem de uma viagem que sempre quiseram fazer. São seres humanos que acabam preferindo uma vida mediana a sofrerem o impacto da queda, quando a realidade é dura demais.

Ele vai cair no chão e você vai sofrer. Mas você quer assim mesmo?

Lembro de uma pessoa que conheço fazer despretensiosamente uma pergunta incômoda: você preferiria experimentar o sorvete e ele cair no chão, ou nunca tê-lo experimentado, mas também não sofrer por ter perdido?

De início, a pergunta me soou tão óbvia! Claro que todos preferiríamos experimentar o sorvete, ora bolas! Dar uma boa degustada, sentir o quão cremosa e encorpada era sua textura, o quão doce era seu sabor. Teríamos conosco a eternidade daquele momento, que durou o mesmo tanto de silêncio entre When Love Breaks Down e Memories Fade lá em cima.

Mas tentei ver as coisas por outro prisma, sob uma ótica que não era a minha. Lembro que, mesmo na superficialidade típica de uma adolescente de 12 ou 13 anos, tentei desconstruir minha resposta. Queria me colocar no lugar do outro, especialmente da pessoa ao meu lado, que respondeu que preferiria nunca experimentar.

Eu mesma mudei de ideia. Tenho essa impressão, já que nunca mais consegui responder de bate e pronto a essa pergunta. Ela me deixou tão encafifada que me levou a fazê-la aos meus amigos (junto com Beatles ou Rolling Stones?, devo reconhecer. ̶P̶o̶b̶r̶e̶z̶i̶n̶h̶o̶s̶!̶).

Já ouvi respostas ótimas e presenciei silêncios épicos, acompanhados de olhares apertados e cabeças viradas para cima, como se na esperança de que viesse do alto alguma resposta, ainda que inconsistente.

A verdade é que todo mundo é um pouco querofóbico. Responder a essa pergunta supérflua tendo um sorvete como protagonista é fácil: se cair no chão, compra-se outro; se não experimentar hoje, experimenta-se amanhã. Mas e se no lugar do sorvete, a pergunta for formulada tendo algo ou alguém inestimável?

Ser humano é ser limitado em muitos aspectos. Ao passo que desenvolvemos pesquisas incríveis, formulamos ferramentas e algoritmos cada vez mais complexos, continuamos pequenos, assustados e temerosos.

Passamos tanto tempo entre as abas abertas do computador ou aprisionados entre os poucos centímetros da tela do celular, que perdemos o chão se confrontados com um fato imprevisível que seja, com qualquer coisa de uma realidade fora do planejado. Temos medo, muito medo, do incontrolável, do futuro, do sofrer. É que o incontrolável pressupõe a força da natureza que nos escapa, do destino que não pode ser previsto.

Um bom exemplo disso é a retirada de mamas e outros órgãos, um procedimento cada vez mais comum, para a prevenção de um câncer que nem sequer demonstrou que irá se manifestar. Veja bem, não julgo, de maneira nenhuma, as pessoas que optam por essa cirurgia.

Mas me parece um sinal claro de que precisamos estar à frente de qualquer percalço, temos a necessidade de cruzar variáveis como se fossem fronteiras físicas. Tentamos, a todo momento, limitar o futuro e nos antecipar às possíveis dores.

Igualmente assustador para nós é o efêmero. Especialmente, aqueles momentos ou situações que parecem ter tudo para durar para sempre, mas que nos são privados abruptamente. A morte de um filho recém-nascido, o beijo que ignoramos que seria o derradeiro ou uma ligação no meio de um domingo, de uma voz que, em pouco tempo, não seria mais ouvida. A mudança pode resultar em dias subsequentes bons ou ruins, porém, certamente, incertos. E isso nos assusta.

E dói porque não lidamos bem com perdas. É como se não fôssemos programados para elas.

Mas não é o fim que torna belo o início? Não é a iminência da morte que nos faz viver a vida mais plenamente, daí a expressão viva esse dia como se fosse o último?

Temos medo de mudar, envelhecer, morrer. A efemeridade da vida, tema recorrente na literatura barroca, nos é vilã. Para nós, é difícil aceitar que não somos donos de nada, que nosso tempo nessa Terra é extremamente fugaz. Essa preocupação é tão antiga, que deixo um dos melhores sonetos de um dos melhores poetas do nosso país: Discreta e formosíssima Maria, de Gregório de Matos. Já no século XVII, ele se preocupava com o passar do tempo e seus efeitos sobre a alma e o corpo de sua esposa, Maria:

Discreta e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer hora
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos, e boca o Sol, e o dia:

Enquanto com gentil descortesia
O ar, que fresco Adônis te namora,
Te espalha a rica trança voadora,
Quando vem passear-te pela fria:

Goza, goza da flor da mocidade,
Que o tempo trota a toda ligeireza,
E imprime em toda a flor sua pisada.

Oh não aguardes, que a madura idade
Te converta em flor, essa beleza
Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.

O que nos resta, como o próprio Gregório aconselha na terceira estrofe é aproveitar. O clichê do Carpe Diem, serve apenas como desbotada tatuagem na pele, em nada demonstramos acreditar nele.

Aos poucos, temos perdido a capacidade de dividir, de surpreender e de sermos surpreendidos. Que façamos diferente e tenhamos coragem para ousar, tentar e, às vezes, quebrar a cara também.

Precisamos entender que faz parte da vida o dar certo e o dar errado. Não é fácil e é um processo que não acontece do dia para a noite. Mas que possamos resgatar, do meio do nosso caos interior, a flor dessa nossa mocidade que encolhe a cada dia.

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Thais Isel
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Written by Thais Isel

Por encarnar em mim doses homeopáticas de forças antagônicas, talvez minha melhor definição seja uma metida a escritora e artista soft barroca pós-moderna.

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