Contexto ou Exploração? O Corpo Feminino na Arte Ocidental
Com tanta estrada e após tantas influências e estilos diferentes, polêmica é o que não falta nos meandros da História da Arte. E a discussão sobre a nudez, especialmente sobre aquela que envolve o corpo feminino, é uma dessas polêmicas mais conhecidas, já que remonta aos tempos da Grécia Antiga.
Nascida da própria necessidade humana e inata de se comunicar, a Arte transforma e é transformada há milênios. É inegável que muita coisa aconteceu dos tempos das pinturas rupestres até as concepts de jogos e filmes — tão populares nos dias de hoje. Uma característica, entretanto, não mudou: o interesse de nós, humanos, pela nudez.
Seja do corpo feminino ou do masculino (em menor escala), a representação do corpo nu está presente em todos os movimentos artísticos mapeados ao longo dos últimos 4 mil anos. Mas é interessante ressaltar que, uma vez que o sexo prescinde da nudez em si, nem sempre tais representações têm relação direta com pornografia ou mesmo sensualidade.
Mesmo assim, uma pergunta ecoa há anos e foi feita no final dos anos 80 pelo famoso grupo feminista Guerrilla Girls: “por que para estar em um museu a mulher precisa estar nua?”. A resposta a essa questão está longe de ser curta ou simples.
Por isso, é necessário recorrer à História da Arte, além da própria História Humana, para entender um pouco da evolução dos nus artísticos femininos e seus diversos contextos.
O corpo feminino na arte da Grécia Antiga
Quem acompanha arte já sabe que na Grécia dos séculos X a VI a.C. o ideal de beleza era masculino. Para espartanos e atenienses, não era possível dissociar uma mente brilhante masculina de uma aparência igualmente incrível. A beleza física do homem grego, livre, que consistia em abdômen definido, cintura fina e pênis pequeno, era sinônimo de dádiva dos deuses.
Foi nessa época que as primeiras esculturas retratando a beleza masculina foram criadas. Ser um homem bonito era fundamental naquela sociedade, criadora dos jogos olímpicos e amplamente homossexual. Os homens amavam pessoas do mesmo sexo porque se consideravam seres superiores e precisavam se relacionar com quem igualmente o fosse.
Mas se para um homem a beleza era uma característica fundamental e sublime, para as mulheres era bem diferente. Mesmo as “calipígias”, mulheres de bumbum grande e torneado, que eram associadas à deusa do amor e da beleza, eram discriminadas e incentivadas a competirem. Apenas uma poderia ser considerada “a mais bela”.
Foi nesse contexto tão diverso para homens e mulheres que o escultor ático Praxíteles criou a primeira figura de corpo feminino nu em toda a história. Criada em 350 a.C., a Afrodite de Cnido representava a deusa do amor com a mão esquerda segurando tecidos sobre um vaso, enquanto a direita cobria delicadamente sua genitália.
Antes da Afrodite de Cnido, as kouros, ou esculturas monumentais gregas de homens produzidas entre os séculos VI e V a.C., representavam figuras atléticas, heróicas e desafiadoramente nuas. As femininas, chamadas kourai, entretanto, apareciam invariavelmente vestidas.
Existe uma dualidade na escultura da Afrodite de Cnido que merece ser pontuada. Ao mesmo tempo em que ela cobre sua genitália com a mão, em uma tentativa de escondê-la, ela aponta para a região, chamando atenção para ela. Historiadores entendem que a representação foi criada de forma a destacar fertilidade e força, mas também mimetizando uma tentativa de se proteger de alguém que surpreende sua nudez.
Essa ambivalência na representação (proposital ou não) causou alvoroço na época: a escultura virou objeto de adoração de viajantes que se deslocavam a Cnido para contemplá-la, além de virar tema de diversos poemas e elogios de filósofos e artistas. A escultura original se perdeu, de forma que apenas réplicas oferecem um vislumbre do que teria sido a verdadeira imagem.
Independente da intenção de Praxíteles ao criar a escultura, é evidente que o olhar do observador é direcionado para o púbis. E a incapacidade de enxergá-lo completamente traz também um significado. O observador torna-se uma espécie de voyeur, um violador da vontade da mulher retratada. Uma vez que ela cobre sua “vergonha”, fica claro seu não desejo de ser observada, exposta. Assim, a mulher, em sua primeira representação na arte, já surge como vítima.
Para a escritora e historiadora da arte Nanette Salomon começa a “construção da mulher como uma perpétua vítima de estupro na arte europeia”. A figura feminina se define como o oposto a um homem invasivo que a observa.
Em um contexto mais pudico, está a Vênus Capitolina. Considerada uma derivada da versão de Cnido, Capitolina usa ambas as mãos na tentativa de cobrir suas partes íntimas. Com a mão direita cobre o púbis e, com a esquerda, os seios.
Assim, a pose da Vênus Capitolina e suas versões (Pudica, de Médici e outras) passa a ser entendida, como defende Salomon, “apenas como um tipo de atributo profundo e duradouro próprio às mulheres, em vez de mostrar uma cena que revela uma reação momentânea a uma situação específica”.
Salomon conclui em seu estudo que “a Afrodite de Cnido pode ser vista como o ponto de partida de uma nova história da arte. Uma história que privilegia o nu feminino sobre o masculino”. Começa, então, a tradição de retratar a mulher na arte sempre em reação a uma atitude masculina. Ela será por diversas vezes a vítima, a deusa, a exótica, a prostituta ou a mãe, mas raramente livre protagonista de seus desejos.
Já no chamado “período helenístico”, que compreende a conquista da Grécia por Alexandre Magno até a incorporação do território ao Império Romano, acontecem várias mudanças na forma como a arte grega é produzida.
Grande parte dessa mudança se deve à influência da arte e da visão de mundo de outros países. Sob a liderança de Alexandre, a sociedade grega influenciou as culturas orientais e por elas foi influenciada, especialmente, com o que vinha do Egito e da Índia.
Dessa forma, a arte passa a ser mais sofisticada, eclética e menos centrada na beleza e virilidade masculinas. O que não era assim tão “belo” teve também o seu lugar na arte do período helenístico.
Cada vez mais, a busca pela representação das emoções humanas, com traços mais realistas e menos idealizados eram evidentes em estátuas, relevos e esculturas do período. Com isso, o interesse pelo nu feminino aumentou.
Como as mulheres ganharam um pouco mais de direitos com a conquista de Alexandre o Grande, a nudez em vasos gregos se tornara símbolo de desejos de fertilidade e sucesso para casais. A mulher é retratada no período de forma bem oposta ao período anterior e longe de ser uma vítima.
Isso mudaria, paulatinamente, com a ascensão do cristianismo, no século I a.C. O pudor invadiria a arte, tendo o seu auge com a queda do Império Romano, ocorrida em 476 d.C. Se na Antiguidade a beleza do homem dominava as representações artísticas, a mulher seria a protagonista do esconde e mostra tão presente nas artes do período medieval e moderno.
Pausa: a arte medieval
Diferente do paganismo, o Cristianismo não incentivava a criação de imagens de deuses, muito menos a representação de sua nudez. O pudor que dominou a era medieval e resvalou também na arte, era algo que não existia na Grécia Antiga e nem durante o período helenístico.
Na Idade Média, o corpo adquire um caráter contraditório: ao mesmo tempo em que é reprimido pela religião, como personificador do pecado e das tentações, ele não deixa de ser sacralizado.
Existe, no período, uma espécie de tensão entre o corpo feminino, diabolizado, e o corpo masculino, endeusado. Nas representações de Cristo, imagem do próprio Deus encarnado, o que se mostra é o aspecto santificado e puro do corpo.
Enquanto isso, o corpo feminino surgia ora na imagem de Maria, a Virgem Mãe de Deus, enlutada pela perda do filho inocente, ora em Eva, a primeira pecadora.
Uma das raridades na representação da nudez medieval são os entalhamentos de Adão e Eva feitos em sarcófagos encontrados no Vaticano. O de Junio Basso, que data de cerca de 359 d.C., é o mais famoso entre eles.
Com a criação da Inquisição, em 1231, fica ainda mais rara a representação da nudez fora do contexto bíblico. Assim, a quase total ausência de nudez na arte medieval levou os artistas a não praticarem ou estudarem anatomia humana.
Como efeito colateral dessa ausência, é importante notar que a técnica se altera de acordo com o período. A representação do corpo é imprecisa e desproporcional na era medieval e esse seria o aspecto artístico que mais se transformaria com o Renascimento.
A preocupação com a representação de um corpo cheio de curvas, sadio e belo é, justamente, um dos pilares da arte renascentista.
As transformações na representação do nu
Misticismo e religiosidade tão comuns era medieval eram questionados e, pouco a pouco abandonados a partir do século XV. Estudiosos cada vez mais valorizam os fenômenos naturais em detrimento do conhecimento do divino nos anos que viriam a ser conhecidos como Renascimento Cultural.
Nas artes, pintores e desenhistas voltariam aos estudos da anatomia, inspirados pela arte da Grécia Clássica. Essa redescoberta da cultura e da arte greco-romana elevou o interesse pela nudez ao topo da cadeia artística.
Donatello, com seu Davi, criado em 1440, é um dos melhores exemplos da arte renascentista em proporções idealizadas. Outros artistas, como Pollaiuollo, Del Castagno e Fouquet, são alguns dos que traduzem bem os primeiros momentos da arte renascentista.
Modelos femininos para observação começam a ser utilizados nas recém-criadas academias de arte, a fim de que os pintores e escultores obtivessem maior precisão na representação. Vale ressaltar que os masculinos já eram comuns há tempos.
Mas é em 1486 que o Renascimento tem sua personificação. Trata-se da obra com o Nascimento da Vênus, de Sandro Botticelli. Essa é a primeira pintura tendo a nudez feminina como tema principal. Após pintar a famosa Capela Sistina, Boticelli retorna à Itália e atende ao pedido da família Médici, que encomenda a obra. Inspirada por versos do poeta Poliziano, a imagem é delicada, detalhista, rica em cores vivas.
A partir de então, para os artistas, passa a ser fundamental entender as possibilidades e variedades de corpos. A representação do nu é entendida como o ápice da produção do gênio artístico. Tal valorização é clara por meio do livro Proporções Humanas, elaborado pelo pintor alemão Albrecht Dürer, em pleno século XVI.
Ainda longe de realista, começa a conquista da técnica no Renascimento. É a partir desse momento que a habilidade artística passa a ser medida pela representação do corpo nu, sua variedade de formas, volumes e proporções.
Dessa forma, os intelectuais da época criam uma justificativa para representar o nu sensual. Eles alegariam que a nudez deveria ser contemplada como reflexo da inteligência e habilidade do artista.
Sob essa ótica, o corpo feminino nu passa a figurar em diversas obras do período, ao mesmo tempo, sendo objeto de estudo e obsessão de pintores e escultores. Especialmente na Itália, são recriadas, exaustivamente, imagens da Vênus nua, seja em paisagens idílicas ou em ambientes domésticos.
O mais interessante é que, frequentemente, essas pinturas são voluptuosas, exageradas nas curvas, no tom da pele e na sedução, demonstrando até certo desleixo na proporção e na escolhas das cores para compor a figura feminina.
O historiador Kenneth Clark ressalta em seu livro The Nude: A Study in Ideal Form que:
o nu feminino era tanto o limite interno da arte quanto o externo da obscenidade. A estrutura que liga arte e obscenidade segurava todo um sistema de significados. Ao mesmo tempo que o nu da mulher teria boa aceitação, também seria sinônimo de risco, já que ele ameaça desestabilizar as fundações do senso de ordem. (Tradução livre)
Nos séculos XVI e XVII, enquanto no norte da Europa a representação religiosa continuava, nos países mais ao sul era bem diferente. Artistas como Ticiano, na Itália, e Goya, na Espanha, retratavam nus femininos em contextos pagãos e puramente sensuais.
A Vênus, de Ticiano, e a Maja, de Goya são exemplos perfeitos da polêmica envolvendo nus femininos no período. Enquanto a Maja foi censurada na Espanha, a Vênus chegou a ser criticada por admiradores de arte na época. A polêmica foi tanta que até Mark Twain, mais de três séculos depois, declarou seu horror. Para o escritor de As Aventuras de Tom Sawyer, aquela era obra “mais obscura, mais vil, e mais obscena que o mundo já possuiu”.
É comum que os próprios artistas façam questionamentos sobre o que está em evidência e as produções realizadas em seu período artístico. Isso, frequentemente, os leva à inovação e ao rompimento com o estilo vigente. E é esse devir artístico que renova e transforma a arte.
Foi graças ao incômodo que, ainda no século XVII, começava a surgir uma representação mais natural do nu. Com os pincéis de Artemisia Gentileschi, Caravaggio, Rubens e Bernini, que o barroco alcança seu auge. Pinturas como Susanna e os anciãos (1610) ou Dänae (1612), de Artemísia, e Amor Vitorioso (1601), de Caravaggio, revelam formas mais naturais e contexto não sensual. O interesse desses artistas eram mostrar algum vigor e até a psiquê dos personagens retratados.
Muito tempo depois, já no final do século XVIII, torna-se popular após a Revolução Francesa a tradução de ideais iluministas na arte. Os recém estudados (e adotados) conceitos de liberdade, paz, igualdade e fraternidade pós-revolução são personificados na figura de mulheres nuas. É que, mesmo que de forma não proposital, seria interessante e até necessário, encontrar uma narrativa como justificativa para separar beleza de obscenidade na representação do nu feminino.
O exótico como nova justificativa para a representação do corpo feminino
É sempre impossível separar contexto histórico da arte e, mais uma vez, há uma ligação muito estreita entre o que acontecia na Europa e o que estampava as telas da academia.
Com a exploração das terras do “Novo Mundo”, era comum que artistas viajassem para a América, África e Ásia. Dentre imagens de encantadores de serpente, islâmicos e paisagens exóticas retratados, a nudez dos “exóticos” povoariam as telas.
Orientais vendidos como escravos, ilustrações intrincadas dos haréns cheios de belas mulheres e indígenas em trajes de seu dia a dia passam a ser uma maneira de retratar a nudez humana sem chocar a burguesia, que se consolidava a cada dia como consumidora de arte.
Se retratar uma mulher europeia em trajes sumários já escandalizaria ou seria considerado ofensivo, uma oriental nua, sentada em uma cama com postura sexual, seria apreciada como mero retrato da “realidade” desses povos recém conhecidos.
O Orientalismo reforçou uma série de estereótipos de culturas consideradas bárbaras e “não civilizadas”. As obras desse período foram largamente utilizadas como campanhas favoráveis a colonização, mesmo que informalmente, por países como França e Inglaterra.
Vale um breve comentário sobre a arte brasileira, nesse contexto. Obras como A morte de Moema (1866, de Victor Meirelles) e Marabá (1822, de Rodolpho Amoêdo), integrantes de um movimento conhecido como “indianismo romântico”, podem ser entendidas da mesma maneira que o Orientalismo na arte europeia.
Enquanto pinturas como Pompeiana (1879, de João Zeferino da Costa) e, posteriormente, Dolorida (1909, de Antônio Parreiras), chocavam e eram censuradas por retratar mulheres brancas nuas sem contexto nenhum para servir de justificativa, as imagens de indígenas eram amplamente aceitas e admiradas pela elite da época.
Um caso específico: a polêmica Origem do Mundo
Toda a polêmica envolvendo o corpo feminino nu não pode ser comparada àquelas do período conhecido como “Realismo” na arte. Com uma veia libertina pulsante, Gustave Courbet (1819–1877) pintava nus femininos com regularidade. Uma pintura, especificamente, deu o que falar (na época e, recentemente, até no Facebook): trata-se de A Origem do Mundo (1866, de Gustave Courbet).
O choque ocorreu graças à representação anatômica dos órgãos sexuais femininos, que não estava ligada a nenhum contexto histórico ou justificativa literária. O virtuosismo com o qual a pintura é feita, além da grande habilidade de Courbet em retratar o que raramente era visto pelo ângulo da obra foi o suficiente para derrubar queixos na comunidade artística e ainda hoje. Há quem diga que se trata, sim, de uma pintura pornográfica.
Courbet explicou que se inspirou na tradição sensual de Ticiano e Veronese para criar A Origem do Mundo. Recentemente, foram descobertas cartas trocadas entre os escritores franceses Alexandre Dumas Filho — rebento do autor de Os três mosqueteiros — e Gorges Sand, pseudônimo da baronesa de Dudevant, considerada a maior escritora francesa.
Essas cartas apontam que a ex-dançarina da Ópera de Paris Constance Queniaux é a dona da genitália retratada na obra. Quando o quadro foi pintado, Constance era amante do diplomata otomano Halil Serif Pasha — conhecido com Khalil Bey — , que encomendou a obra a Courbet para sua coleção de arte erótica.
O diplomata seria dono de uma extensa coleção de arte erótica, que teria sido desfeita por dívidas de jogos. Khalil também teria La Grand Odalisque (1814, de Ingres) e As mulheres de Argel (1834, de Delacroix) na mesma coleção.
O fim do século XIX e XX
A transição social pela qual passava a Europa, especialmente, a França do final do século XIX afetou mais uma vez a arte. Paris era urbana, cultural e noturna. Os bordeis simbolizavam a diversão mais comum para os homens de diversas idades.
Vale salientar que a prática da prostituição era regulamentada durante o governo de Napoleão 3º e até o século XX, mas “fazer ponto” era ilegal. Por esse motivo, era preciso que as mulheres tivessem registro com a polícia, estivessem formalmente empregadas em um único bordel e pagassem impostos.
Foi só em 1946 que os bordéis se tornaram ilegais na França. (Só para efeito de curiosidade, existe hoje no país um debate que divide opiniões sobre criminalizar ou não o ato de pagar por sexo).
Com a arte, as prostitutas saiam das margens da sociedade e eram levadas ao posto de destaque artístico, adquirindo até certo prestígio em salões europeus. Não é erro algum afirmar que foi por meio da imagem da prostituição que nasceu a arte moderna.
Artistas como Manet, Degas e Toulouse Lautrec retratavam prostitutas e cortesãs em suas obras. Manet se dedica à criação de Olympia, em 1863, para a qual posou a pintora Victorine Meurent — que não era prostituta e já tinha aparecido em outros quadros dele.
Exposta no Salão de Paris de 1865, Olympia retrata uma prostituta deitada na cama, enquanto uma serva negra lhe traz flores. Nessa obra, o que chocou, entretanto, não foi a nudez da personagem em si. O olhar sério de confrontação da personagem, bem como o contraste do excesso de roupas da sua serva foram os principais incômodos para a sociedade. Outro ponto que merece atenção é que, mais uma vez, a Vênus de Ticiano é mencionada como influência, assim como a Maja, de Goya.
Já Lautrec registrou, em 1894, os humilhantes exames médicos pelos quais as prostitutas precisavam passar todos os meses. Em seu quadro Rue des Moulins, a nudez retratada não tem nada de sensual. As mulheres parecem cansadas, humilhadas e vítimas da burocracia que lhes era imposta.
E mesmo que poucos artistas retratassem a prostituição como uma necessidade financeira de mulheres excluídas em detrimento da atmosfera de glamour, obras como a de Manet e as tristes bailarinas de Degas trouxeram um pouco desse sentimento à tona.
Posteriormente, os movimentos modernos, como o cubismo e o expressionismo, dariam ainda mais ênfase aos sentimentos dos protagonistas das obras.
A nudez do corpo e o significado latente da emoção era tema recorrente na arte moderna. No Expressionismo, os gestos, posturas e expressões faciais são explorados, não mais a sensualidade ou mera nudez. São as emoções, muito mais do que corpos, que estão nus na tela.
Os artistas do famoso grupo Die Brücke rejeitavam o academicismo em busca de mais realidade e significado às obras. A nudez e a sexualidade sem idealizações eram entendidas como uma reação aos costumes burgueses.
O paradoxo da ausência de sensualidade na retratação de mulheres nuas revelava uma nova significação ao nu artístico e tem um de seus pontos altos em Demoiselle D’Avignon, (1907, Picasso).
Na obra, o contexto é mais social do que sensual, revelando uma tendência das telas do fim do século XIX e início do século XX. Se em Picasso a estética cubista já era uma novidade que incomodava, a temática não deixaria por menos.
A imagem retrata cinco prostitutas no bordel da rua Avignon, em Barcelona. Duas delas, tem seu rosto em cores diferentes, muito mais escuras. Enquanto alguns creem se tratar do uso de máscaras africanas na composição dessas duas das figuras, há quem diga que Picasso faz menção à sífilis, que deformava o rosto de prostitutas e era tema espinhoso na sociedade europeia. A doença voltava com força total naquele período.
Começava uma nova arte que, com o surgimento do cinema e, posteriormente, da performance, daria novos contornos e significados à nudez do corpo feminino na arte.
É fundamental termos o cuidado, ao observar a História Geral e a História da Arte, em evitar o anacronismo. É mais do que claro que não se deve medir séculos passados com a régua atual de valores, de expectativas e, principalmente, de tecnologia e educação.
Ao mesmo tempo, é igualmente importante não olharmos a arte desconectada de contexto e isenta ou imparcial per se. Nos tempos em que a fotografia, a tevê, o rádio e as redes sociais não existiam, a pintura e a escultura ajudavam a formular muito da opinião pública, junto às publicações de jornais, estudos e ensaios. É impossível desconsiderar as academias de arte como formadoras de opinião.
Quanto ao corpo, ele é, desde sempre, instrumento de poder e o corpo feminino muito mais objetificado do que o corpo do homem. O jogo de esconde e mostra do corpo da mulher é duplo: serve para excitar e para culpar; para lançar fêmeas ao fogo, acusadas de bruxaria, ao mesmo tempo que levava sacerdotes a horas trancados no quarto antes das penitências.
A ideia desse texto foi, justamente, inquietar e levar à reflexão sobre o poder das artes, especialmente as visuais na compreensão dos lugares do corpo, desde tempos antigos.